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JOSUÉ DE CASTRO DIRIA O QUE?

Convidados pelo Banco do Nordeste, os repórteres Xico Sá e U. Dettmar (fotógrafo) iniciaram uma longa viagem que se propõe a revelar a nova "geografia da fome" no Brasil e as iniciativas - públicas e privadas - que o país começou a desenvolver para o combate à miséria.
Foto: Agência Brasil - U. DettmarNesta nova reportagem, os jornalistas tomaram o prumo do sertão do Ceará, um paradoxo de barrigas vazias e antenas parabólicas. Um deserto onde uns tantos rezam por comida, outros, pelas “perdições” das novelas da TV. Nos municípios de Irauçuba e Caridade, a rotina do povo é pautada pela espera da chuva que raramente aparece por lá.


Enquanto isso, festejam a chegada abençoada de víveres - arroz, feijão, açúcar, farinha e café - trazidos pelo ventos do Programa Fome Zero. Onde antes só chegavam, pela televisão, as “desgraceiras” da capital, agora também chega a mão do Estado. Não é pouco para essa parte da nação semi-árida onde nem mesmo a aroeira - de cuja casca se faz um antibiótico natural - tem resistido à dureza da estiagem.
Foto: Agência Brasil - U. DettmarA série de reportagens foi deliberadamente inspirada nas denúncias do médico e escritor pernambucano Josué de Castro (1908-1973), autor do clássico "Geografia da Fome", livro que há 56 anos chocou o mundo ao revelar a tragédia brasileira.
Xico Sá - 40 anos, 20 de profissão. Atuou como repórter no “Jornal do Commercio”, em Recife, “O Estado de S.Paulo”, Veja”, “Diário de S.Paulo” e “Folha de S.Paulo”. Em 1994, ganhou o Prêmio Esso de Reportagem ao revelar a existência de um bingo, promovido por empreiteiros, cujo o objetivo era lotear obras públicas em São Paulo. É autor do livro “Modos de Macho & Modinhas de Fêmea” (Editora Record) e mantém o site “O Carapuceiro” (www.carapuceiro.com.br) na internet.
Ubirajara Dettmar - 65 anos, é fotógrafo profissional há 43. Esteve em três guerras - Nicarágua, El Salvador, e na invasão americana em Granada. Trabalhou em “O Cruzeiro”, “Jornal do Comércio”, “Correio da Manhã”, “Última Hora”, “Diário de Notícias”, “O Globo”, “Veja”, “Folha de S.Paulo”, “Folha da Tarde”.
Fome envelhece nos desertos do Ceará
Tudo em volta nem está tão triste assim. Há um verde-cinza que engana a vista e o povo ri, toma cachaça, acredita nos deuses que dançam com o mais recente sucesso do forró. No autofalante, a toda altura, "Amor de rapariga", música sobre moças perdidas que encantam o mundo, os pequenos e derradeiros cabarés do semi-árido. Até choveu este ano, vez por outra um açude dá sinais da fartura possível, uma traíra, um piau, chupa-pedra, um peixe seco que se lambuza na lama, um menino nu que nada para a beira da outra margem da coisa-alguma, a vida de quase sempre, besta, devagar, um mundão de rostos vincados de poucos anos e muita espera.
Foto: Agência Brasil - U. Dettmar“Quantos anos a senhora tem?”, pergunta o repórter, sob os vícios burocráticos da função. “Quantos o senhor me dá?”, devolve Maria Cícera de Souza. Parece ter alguma coisa como meio século de necessidade. “Sabe não?”, dona Maria Cícera insiste, sem a aparente tristeza que se espera dos que penam. “Uns trinta”, diz, pois não tem ciência nem tampouco registro de nascimento certo.
Largada do marido  “fugiu com uma rapariga e o diabo que o carregue pra mais longe ainda” _ e mãe de três meninos, Maria Cícera sobrevive em Irauçuba, a 146 km de Fortaleza, uma das áreas mais atacadas pela desertificação no Nordeste. Nem o mulungu, cuja casca rende um chá para sonos profundos contra qualquer danação do juízo, sobrevive mais na terra infértil. A aroeira, antibiótico natural, também tem pouca resistência a essas alturas da caatinga.
O deserto no semi-árido, dizem os ecologistas do ramo, é pior do que o areião de tantas ventanias que acostumamos ver na TV e no cinema. Lá, no Oriente, as areias ainda representam vida, aqui significa terra morta, praticamente irrecuperável, em que se plantando nada dá _ avesso do delírio da carta de Pero Vaz de Caminha quando do Descobrimento do Brasil. No semi-árido brasileiro, uma faixa equivalente ao estado do Ceará já está deserta ou caminha para esta infertilidade.
Maria Cícera também acha que não terá mais filho. "Terra maltratada, acho que não sai mais nada daqui, minha criatura. O marido foi um traste, os dias lascaram o juízo, a precisão acabou com tudo, num presto mais é pra coisa nenhuma", diz, enquanto banha Francisco Lucas, 3 anos, e Maria Verônica, 2, no quintal de casa. "Num gosto de amostrar esses meninos sujos para ninguém", capricha, enquanto já veste a família para tirar fotos.
Por mais pobres que sejam, as mães não gostam de mostrar os filhos sujos ou sem alguma roupinha, como os miseráveis costumam ser exibidos na imprensa e no cinema piedoso do Brasil. Além dos dois, dona Maria Cícera tem mais uma, Maria Célia, 10, que já tem a sua vaidade própria.
A família de Irauçuba, município com 19.563 habitantes (dados do censo 2000 do IBGE) e quase toda a sua área tomada pela desertificação, passa fome. Quase todo dia. Só não vive mais à míngua por causa dos vizinhos, que repartem os nacos da sustança que têm. "Eu não vou falar nada, pois o senhor está vendo e não gosto de gastar saliva".
Maria Cícera não é assistida por nenhum programa de nenhum governo. Nem existir, existe. As crianças, também não. O pai ("aquele peste da bubônica!") se foi, os documentos estão incompletos. Os registros dos meninos, se é que foram tirados, ela não sabe mais, ninguém viu. Clandestinidade da moléstia. "E eu tenho mais juízo que preste, depois de tanta desgraceira?!", sacode.
O deserto de Irauçuba é a terra da paçoca, conserva feita de farinha com carne seca machucada no pilão. Útil para as grandes viagens. Como a dos paus-de-arara, ônibus e caminhonetes que passam carregadas de romeiros por ali. O rumo é São Francisco das Chagas, santo de Canindé, terra onde os devotos, cabeças grandes, inchadas de preocupações e necessidades, pagam todas as penitências.
"Quem é rico anda em burrico/ quem é pobre anda a pé", assim cantou Luiz Gonzaga sobre a mesma rota, décadas atrás. Agora existem as motos que cortam o caminho de estrada ruim, esburacada, mas os jegues mantêm-se como um arcaísmo mais do que utilitário. "Desaprega, Muderno", tange "seu" Antônio Saraiva da Silva, 56 anos, um jumento ao longe. O bicho não sai do canto.
A palavra moderno é muito utilizada no sertão para batizar coisa nova ou muito desconhecida. O jegue é de serventia, mas quando teima com o mundo imita as danações dos sertanejos, amua-se, resiste, empaca.
O município de Caridade, a 94km de Fortaleza, no mesmo prumo do Canindé, diz tudo no seu batismo. Os nomes nunca são à toa nesse mundo das precisões. Até os apelidos dos meninos tratam do mesmo tema antigo: "Morta-fome", "barriga-intiriça", "bucho quebrado" e por aí afora. As histórias, nem tão antigas assim, dão conta de meninos e moças trocadas por comida, um dinheirinho de nada, uma carga de rapadura, como narram os cordéis mais velhos. Dar um filho para alguém ("gente com condição") criar é um pulo. "Já ouvi tanto essas histórias, mas a minha não dou nem com a polícia", diz Maria Elisângela Gomes da Silva, de 18 anos, mãe de Maria Elaineda, 2 anos. "Mas também eu falo por causa dessas ajudas novas (programa Fome Zero) que tira a gente da choradeira maior".
Feira do Fome Zero é segurança para escapar
Foto: Agência Brasil - U. DettmarBenedito Severino da Silva, de 57 anos, morador de Várzea Redonda, povoado do município de Caridade (CE), recebeu o primeiro benefício emergencial do programa Fome Zero, e trouxe para casa, com a sua mulher, Osmarina Ferreira da Silva, 48, uma feira que não estava acostumado fazer.
"Dez quilos de açúcar, nove de arroz, dois de bolacha, três de massa de cuscuz, uma lata de óleo, dois pacotes de macarrão, dois pacotes de bolacha, pimenta, alho, três quilos de farinha, café...", recita Osmarina, quase de um fôlego só. "Tem mais umas coisinhas", diz.
O casal teve 14 filhos. Quatro se foram, antes de completar um ano. Não há diagnóstico preciso. "Começou com uma diarreiazinha...", lembra a mãe, memorial da desnutrição. "Não é querendo me gabar não, mas hoje é mais fácil viver". Seu Benedito atalha: "Escapar, né, nega?"
O inverno, como é conhecida a estação das possíveis chuvas no Nordeste, não foi lá essas coisas. "Mas até que molhou, não vamos mal agradecer não", retorna Benedito à conversa. A família plantou feijão e milho. Tirou pouco, subsistência. Um menino vem lá de dentro da casa, de onde sai um barulho de TV e de cachorro com latido de bom caçador, com a nota fiscal das compras listadas aí acima.
Família zelosa com o benefício que recebe do Mesa (Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e do Combate à Fome). "Quero ver o cabra me pegar enrolando um ser humano nessa vida". É seu Benedito de novo. "Hoje ele tá é conversador", espanta-se a mulher. "Ele é tão amuado".
Finalzinho de dia, aquele vermelhão no poente de Caridade. As antenas parabólicas _ o sertão tem parabólica, muitas delas enviadas pelos filhos migrantes em São Paulo , até na copa dos juazeiros _ chegam com as "desgraças" da capital. Haja crime. "O povo gosta de ver essa patrulha", diz Maria Zenaide, 45 anos, sobre o gosto por programas policiais. "Mas aqui a gente ainda pode dormir de porta aberta".
Um cheiro de cuscuz com feijão sobe no ar. Mais adiante, o sabor é de paçoca. "Chegue pra cá, venha comer", convidam os moradores. Os mais velhos preferem a conversa nas frentes das casas, esquecem a vida que chega pela TV. As meninas correm para a "perdição", como dizem os pais, novelística. Um caminhão passa, lá longe, com romeiros cantantes para o Canindé. Na estrada, meninos esfomeados tapam os buracos do asfalto com areia, para agradar os motoristas. Querem um troco, uma "prata", como chamam as moedas, pelo serviço. Mãos estendidas, mas não ganham nada. Pé na tábua. Caridade é apenas uma placa na poeira do retrovisor.
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